Coisas de Minha Vó – aquelas do arrufo e do cuspe


vó era menina; menina velha – não importava idade, vó era menina de olhos que brilhavam verdes às vezes, dourados outras muitas. vó e eu brigávamos feito molecas.

  • por que você não fez o que mandei?
  • se tivesse me lembrado teria feito, né?!
  • e ainda responde!
  • tenho boca é pra falar mesmo!
  • você não me responda!
  • então não me questione! vou lá deixar pergunta sem resposta!
  • você me respeite! sou  x anos mais velha do que você!
  • é nada, que faltavam dois dias para a senhora completar!

é que eu, nascida dia 2 de fevereiro, e vó dia 4: duas aquarianas de temperamento bem temperado – e no meio dessa agitação, mãe tentava conciliar:

  • mãe, a senhora vai se trocar com essa menina, mãe!!?… deixa ela pra lá!
  • menina, tu não respeita tua vó?!! ela já tem idade!

arrufos de um lado e de outro respondiam aos apelos de mãe; nenhuma das duas queria conversa de harmonia; zanga reinava e prometia longevidade dentro do apartamento 203, para desespero pisciano de mãe. as duas arrebitadamente virando cara uma para a outra enquanto mãe rogava ora pra mãe ora pra filha tanto paciência quanto razão, e nada. irredutíveis. impassíveis, inabaláveis, inflexíveis, intransigentes, obstinação ferrenha, nem vó nem eu cedíamos um milímetro sequer na diáspora familiar.

mas vó tinha alma de artista, sua sensibilidade precisava de eco no outro – e dentro de casa, esse eco era eu para ela e ela para mim – nós nos entendíamos.

assim foi que, certa manhãzinha bem cedinho depois de dias de imbróglio, vó me vendo estremunhar no quarto vizinho  veio me catar.

  • filha… 
  • oi, vó ❤
  • acordou?
  • acordando agorinha..

um silêncio cheio de olhares cúmplices

  • filha, vem aqui, vem! – e me acenou da porta do banheiro que ficava entre nossos quartos
  • que foi que houve? – preocupada se vó tinha visto algum bicho peçonhento, se havia algum perigo, naquele banheiro que fora cenário de meu esfaqueamento no peito por um homem desconhecido em meu sonho tipo pesadelo.
  • cuspi a pasta dental no vaso sanitário e olha o que o cuspe formou!
  • um passarinho! 
  • não é? não é? não parece uma garça?
  • parece demais, vó! olha o bico bem fininho!
  • acho até que ela está carregando alguma coisa no bico, olha!
  • vixe! será que ela pegou um peixe?
  • será?! mas nem tem rabo de peixe saindo para fora do bico, pode ser material para fazer ninho
  • tipo um graveto? mas não seria mais fino? fica parecido que tem pedaço de alguma coisa, mas não galho..
  • ah!… água tá mexendo… vai desfazer a cauda dela…
  • você viu que dá quase para contar as penas da cauda? sabia que são essas penas na cauda que ajudam na direção do voo?
  • e é?!

e mãe chega, estranhando a estranha conversação…

  • vocês fizeram as pazes?

olhamos para mãe como se ela fosse louca e nunca tivéssemos brigado em todas as nossas vidas.

  • hmm?!!!
  • o quê?!
  • mãe, vem ver a garça!
  • garça? aqui no banheiro?!!!
  • é, a vó cuspiu no vaso e formou uma garça, vem olhar antes que desmanche!

foi a vez de mãe olhar para nós duas como se nós não estivéssemos bem da razão

  • vocês estão nesse conversê todo por causa de um cuspe?

olhamos penalizadas para a impossibilidade compreensiva de mãe para aquele momento único e pleno de manifestação artística do acaso, enquanto ela foi embora, rindo da gente e abanando a cabeça como quem diz de si para si: Desisto, essas duas que se matem da próxima vez que eu é que não me meto mais! (obviamente que ela se meteria, sim – e, de novo, inutilmente).

assim como esta (de memória provavelmente trocada e mesclada com outras memórias, que tempo remexe fundo no baú de recordações), muitos episódios de discussão seguida de intriga e tentativas infrutíferas de mãe de conciliar a ambas tendo como desfecho súbito reatar regado a lágrimas, muitas vezes, e juras de amor eterno – que seriam quebradas logo, logo mais adiante ao dobrar a esquina dos dias.

mas chegou o tempo da maturidade e vó e eu desenvolvemos uma cumplicidade da qual mãe nunca conseguiu penetrar e de que tinha um ciúme doido, ciúmes de vó e de mim, mas principalmente um ciúme da cumplicidade que partilhávamos. uma prima de não-sei-que-grau psicóloga resumiu assim: vó e eu tínhamos nos permitido disputar as nossas diferenças através das discussões que, tendo sido resolvidas, deixou a nós duas bem resolvidinhas da silva sauro uma com a outra. 

o que nos era cômodo, por nos admirarmos mutuamente e confiarmos irrestritamente uma na outra. e foi, digo, está sendo assim até o fim.

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