[juro que eu não entendo]

juro que eu não entendo. quando se faz tudo o que supostamente o outro gostasse; tipo não amarrar, deixar livre, acolher a qualquer hora do dia ou da noite, expressar-se livremente, andar e curtir livremente, pensa-se que dessa forma tudo será simples e tranquilo e tudo bem.

… ele vinha/ ela guardava/ garrafas e a si/ – poesia em ré
fotopoesia autoral da série experimental “Circunstanciais” (2012)

mas, não!!! por que tem que se complicar? por que tem-se que estressar? por que tem-se que sofrer por antecipação? mete logo a porra dessa redoma toda goela abaixo e morra! ou então sai de cima que o próximo já está à espera!

que essa mania de se guardar perde-se tempo de se viver, de experimentar.

tenho culpa, eu?!

meus sonhos são pesadelinhos, isto é,  são tão próximos da realidade que nunca me dão a sensação de que estou descansando de verdade. e sempre caio em precipícios. ô vontade danada de querer aprender a voar! só pode! ou então, devo ser descendente não de macaco, mas de lemingue… e estou doidinha para me atirar no primeiro desfiladeiro que encontrar – como uma boa lemingue fêmea. ¬¬  ou, então, ô vontade de me despedaçar como o willy coiote do looney tunes. escolha difícil.

o dreamcatcher pendurado sobre a porta do quarto me alerta de que sonhos não são apenas sonhos – como diria o guru máximo Neil Gaiman, e que provavelmente eu deveria matar essa catita que passa pela casa dia e noite atormentando a minha paciência (isso não tem nada a ver – realmente), e que eu deveria prestar mais atenção ao que ando sonhando ou ao que faço questão de não lembrar de ter sonhado. sim, porque faço questão cerrada de não me lembrar dos sonhos, tão corriqueiros e  quando não o são, tão reais que assustam – como eu sentir as penas duras dos pinguins escorregando por enter minhas mãos enquanto eles se entregavam prazerosamente à morte – por culpa minha.

fotopoesia autoral da série experimental “Circunstanciais” (2012)

pinguins. por que não preguiças? ou ornitorrincos? ou morcegos? mas pinguins?!?… eu era a  responsável por eles, liberei-os para uma apresentação a fim de angariar dinheiro (sempre o vil e dissonante metal atrapalhando) e era uma espécie de armadilha onde o circo era exaurir os bichos antes de deliciarem-nos com uma piscina refrescante na qual eles se atiraram rapidamente…. mas onde também esperava-lhes a morte na figura de tubarões famintos. atirei-me na piscina, na parte rasa, na vã tentativa de conter os pinguins…. de segurar-lhes, e cada pena que passava , que escorregava das minhas mãos… era uma frustração, uma perda.

perda.

ah…. ok. entendi. eu acho.

caralho meu! meu sonho foi foda!

Coisas de Minha Vó – aquelas do arrufo e do cuspe


vó era menina; menina velha – não importava idade, vó era menina de olhos que brilhavam verdes às vezes, dourados outras muitas. vó e eu brigávamos feito molecas.

  • por que você não fez o que mandei?
  • se tivesse me lembrado teria feito, né?!
  • e ainda responde!
  • tenho boca é pra falar mesmo!
  • você não me responda!
  • então não me questione! vou lá deixar pergunta sem resposta!
  • você me respeite! sou  x anos mais velha do que você!
  • é nada, que faltavam dois dias para a senhora completar!

é que eu, nascida dia 2 de fevereiro, e vó dia 4: duas aquarianas de temperamento bem temperado – e no meio dessa agitação, mãe tentava conciliar:

  • mãe, a senhora vai se trocar com essa menina, mãe!!?… deixa ela pra lá!
  • menina, tu não respeita tua vó?!! ela já tem idade!

arrufos de um lado e de outro respondiam aos apelos de mãe; nenhuma das duas queria conversa de harmonia; zanga reinava e prometia longevidade dentro do apartamento 203, para desespero pisciano de mãe. as duas arrebitadamente virando cara uma para a outra enquanto mãe rogava ora pra mãe ora pra filha tanto paciência quanto razão, e nada. irredutíveis. impassíveis, inabaláveis, inflexíveis, intransigentes, obstinação ferrenha, nem vó nem eu cedíamos um milímetro sequer na diáspora familiar.

mas vó tinha alma de artista, sua sensibilidade precisava de eco no outro – e dentro de casa, esse eco era eu para ela e ela para mim – nós nos entendíamos.

assim foi que, certa manhãzinha bem cedinho depois de dias de imbróglio, vó me vendo estremunhar no quarto vizinho  veio me catar.

  • filha… 
  • oi, vó ❤
  • acordou?
  • acordando agorinha..

um silêncio cheio de olhares cúmplices

  • filha, vem aqui, vem! – e me acenou da porta do banheiro que ficava entre nossos quartos
  • que foi que houve? – preocupada se vó tinha visto algum bicho peçonhento, se havia algum perigo, naquele banheiro que fora cenário de meu esfaqueamento no peito por um homem desconhecido em meu sonho tipo pesadelo.
  • cuspi a pasta dental no vaso sanitário e olha o que o cuspe formou!
  • um passarinho! 
  • não é? não é? não parece uma garça?
  • parece demais, vó! olha o bico bem fininho!
  • acho até que ela está carregando alguma coisa no bico, olha!
  • vixe! será que ela pegou um peixe?
  • será?! mas nem tem rabo de peixe saindo para fora do bico, pode ser material para fazer ninho
  • tipo um graveto? mas não seria mais fino? fica parecido que tem pedaço de alguma coisa, mas não galho..
  • ah!… água tá mexendo… vai desfazer a cauda dela…
  • você viu que dá quase para contar as penas da cauda? sabia que são essas penas na cauda que ajudam na direção do voo?
  • e é?!

e mãe chega, estranhando a estranha conversação…

  • vocês fizeram as pazes?

olhamos para mãe como se ela fosse louca e nunca tivéssemos brigado em todas as nossas vidas.

  • hmm?!!!
  • o quê?!
  • mãe, vem ver a garça!
  • garça? aqui no banheiro?!!!
  • é, a vó cuspiu no vaso e formou uma garça, vem olhar antes que desmanche!

foi a vez de mãe olhar para nós duas como se nós não estivéssemos bem da razão

  • vocês estão nesse conversê todo por causa de um cuspe?

olhamos penalizadas para a impossibilidade compreensiva de mãe para aquele momento único e pleno de manifestação artística do acaso, enquanto ela foi embora, rindo da gente e abanando a cabeça como quem diz de si para si: Desisto, essas duas que se matem da próxima vez que eu é que não me meto mais! (obviamente que ela se meteria, sim – e, de novo, inutilmente).

assim como esta (de memória provavelmente trocada e mesclada com outras memórias, que tempo remexe fundo no baú de recordações), muitos episódios de discussão seguida de intriga e tentativas infrutíferas de mãe de conciliar a ambas tendo como desfecho súbito reatar regado a lágrimas, muitas vezes, e juras de amor eterno – que seriam quebradas logo, logo mais adiante ao dobrar a esquina dos dias.

mas chegou o tempo da maturidade e vó e eu desenvolvemos uma cumplicidade da qual mãe nunca conseguiu penetrar e de que tinha um ciúme doido, ciúmes de vó e de mim, mas principalmente um ciúme da cumplicidade que partilhávamos. uma prima de não-sei-que-grau psicóloga resumiu assim: vó e eu tínhamos nos permitido disputar as nossas diferenças através das discussões que, tendo sido resolvidas, deixou a nós duas bem resolvidinhas da silva sauro uma com a outra. 

o que nos era cômodo, por nos admirarmos mutuamente e confiarmos irrestritamente uma na outra. e foi, digo, está sendo assim até o fim.

coisas de Minha Vó – aquela da cobra

digo a todos que nasci em 1914, que foi o ano em que minha vó nasceu e sei que minha função cá neste plano é dar continuidade ao que minha vó principiou a fazer.

minha vó quem me criou desde um ano de idade.  devo a ela meu segundo nome no registro geral (que só os documentos e os amigos mais próximos conhecem). é de vó essa coisa de querer brincar com tintas, de improvisar, de recriar; o que vó fazia, eu logo queria imitar.  botânica e bióloga frustrada porque década de 20 nos fundões dos Quixeramobins não academizavam mulheres, pena! que vó tinha paixão muita por animais e por plantas mais ainda. aprendi com ela a secar flores para pô-las/colá-las em cartões, cartas e afins.   cartas: minha vó era missivista exemplar, sabia corresponder-se do nada com ninguém. tudo o que vó fazia eu queria imitar, até a letra! aliás!, a letra… não, não era assim… era mais personalizada, que em vó o que não lhe faltava era personalidade.  

tem uma da vó que bem vale contar, quase que um causo, vosmecê me querdite se quiser, que vou é contar de qualquer jeito! casa nova no entroncamento (limite entre Belém e Ananindeua), eu – moleca metida a Rapunzel moderna metida em edifícios desde que engatinhava – nunca tinha tido tão espaçoso espaço nos meus 13 anos de vida.  toca a conferir, a desbravar casa toda, que se limitavam muros com os matos típicos do norte, e vou lá eu para o quintal, à porta da garagem, paro, olho para baixo, meu pé meio sobre o batente em que estava e meio solto no ar, e por sob ele, a cabeça de uma cobra curiosa farejando com sua língua bipartida o ambiente modificado.  creio inventei teleporte foi nessa hora, que da garagem me vi – com três palmos de língua do lado de fora – na cozinha ao pé da minha vó que vendo meu assombro perguntou o que acontecera: “Co… cobra… no… quin… quintal… ga… garagem!”

e tu pensas bem que vó titubeou? mas qual o quê!?! pisquei no término do arquejar palavras e cadê vó!!?… pois a danada não foi é ver a cobra de vero? sem nem pestanejar?  ela catou um pauzinho de pouco mais de um palmo de comprimento, agachou-se e toc toc toc na cabeça da cobra! e olhando por sobre o ombro, voz docinha e cuidadosa, “minha filha, não se aproxime, que ela ‘tá preparando o bote!”

só sei dizer que de toc toc toc toc, vó matou cobra e já era hora de almoço, correu para as panelas no fogo para terminar almoço. mas, perainda!, que ainda tem um epílogo: quando peões voltaram do almoço deles (em casa eles eram constantes que nos mudamos a casa ainda nos finalmentes da construção) e sabendo do ocorrido, e vendo o cadáver da cobra, entre perplexos e respeitosos, olhando para a cobra, para a minha vó, para a cobra e de novo para a minha vó, soltaram “mas isso é uma jararaca!, cobra venenosa muito!” – e minha vó “eu bem que desconfiei porque vi a cabeça triangular dela e reparei que os olhos tinham as pupilas muito amendoadas”… assim!, como se tivesse se explicando para o professor na aula do supletivo que fizera! 

o mais interessante é que, depois dessa, quando minha vó, de um metro e quarenta e nove centímetros (nem metro e meio era!), chamava um dos peões, o “caboco” acorria pressuroso que só ele e já respondendo todo no respeito: “pois não, senhora!”.

e eu?.. aprendi com minha vó foi que não se deve temer aquilo que se conhece.  cuidar, sim; temer, nunca!